12.11.10

"Não existe revolução sem resistência"

Tem um aluno meu que já professor. Ele é engajado, libertário dos pés à cabeça e eu adoro conversar com ele sobre educação. Um dia desses ele escreveu isso:

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"Não dá certo!", "Não gosto disso", "Os alunos não vão aprender nada com isso!", "É perda de tempo!", "Eu mesmo nem vou!". Chega! Escutar essas lamentações típicas de professores acomodados e preguiçosos ao extremo de vez em quando ainda vai. Agora, diariamente é dose! Conviver todos os dias com as demonstrações científico-tecnológicas dos queridos colegas de que alunos de escolas municipais e públicas estão destinados ao fracasso e que não vão aprender nada além de metade da tabuada, uma classe gramatical aqui e outra aculá e, com sorte, os pronomes do verbo Tobby é o máximo que esse povo acha que eles irão aprender, né? Pois tá certo! Digo e repito: "PROFESSORES VITIMADOS SÓ PODEM TER ALUNOS ALGOZES!"

A pérola da "prole universitária" da vez surgiu durante uma reunião pedagógica quinzenal, junto à supervisão escolar. Foram discutidos vários pontos, desde os diários de classe até à situação dos possíveis candidatos à reprovação no final do ano letivo. Falou-se também sobre a participação da escola nas festividades do 62º aniversário da cidade, onde haverá o famoso Desfile Cívico com o tema: "A África da luta, do revide e da libertação: Ipanguaçu agora conta a história de uma nação". O tema que coube à escola foi relacionado à ancestralidade dos cultos africanos. Em outras palavras, religião. A supervisora dos anos finais do EF propôs que trabalhássemos em sala os conteúdos antes mesmo de começar a pensar em alas, figurino e tal, ponto de extrema relevância no ensino dos meninos. Proposto isso, vamos aos comments:

"Olhe, eu acho tudo isso uma besteira! Uma grande perda de tempo! Pra quê esses alunos estudarem essas coisas lá do outro lado do mundo? Onde é que isso vai alterar a realidade deles? Isso tudo é só faixada! Ninguém aprende nada, pode ter certeza!"

"Vixe! Não gosto desses negócios de orixás não! O Senhor me livre, mas isso não é coisa de Deus."

"Bem, eu posso até passar na sala pros alunos, agora Deus que me livre e tire da minha cabeça qualquer lembrança disso tudo. Ó, Senhor Jesus. Isso não é coisa do Senhor não."


É, eu estou em choque! OH, MY GOD! Com professores assim, quando é que a educação brasileira vai mudar? Onde vamos com tanta discriminação, intolerância e burrice? Dentre muitas das opiniões que formei com base nos disparates aí em cima eu só posso concluir uma coisa: conhecimento vai  dar no inferno! Por isso, o convite à burrice foi lançado! E que vençam os mais fracassados. 

Todas as ótimas perspectivas que eu tinha a respeito da formação universitária foram pro beleléu tem um tempo, pois eu pensava que nas universidades as pessoas eram instruídas a pensar, a aprender a ensinar e formar cidadãos críticos e pautados no respeito às diversidades culturais, sejam elas de cunho religioso, artístico, social ou sexual. O que esses (as) professores (as) disseram é o cúmulo do absurdo. Isso é simplesmente jogar todas as fichas a serem depositadas no sonho da educação libertária no lixo! Questionei um (a) deles (as) sobre a importância de os alunos negros e pardos, principalmente, terem ideia de sua identidade cultural e do porque, por exemplo, de terem traços físicos similares como textura do cabelo, contorno facial e cor da pele, mostrando que isso era um das contribuições que a escola e, certamente, os professores deveriam dar para os alunos, tendo em vista os altos índices de racismo, preconceito e discriminação para com os afrodescendentes. Resposta... Tchanrã! "Você acha que isso vai acabar o racismo? Isso não vai ensinar nada a eles!". A partir daí, eu realmente vi que não havia motivo para continuar participando da reunião, onde a supervisora e meu colega professor de Língua Inglesa eram os únicos a pensar como eu. A forma como a religião deixa as pessoas burras e cegas é absurda. O ruim disso tudo é você ter de ser ético e seguir convenções morais em relação ao que pretende falar. Você quer falar coisas do tipo: "Olha, deixa de ser ignorante, sua pedra! Você tá fazendo o que por aqui? Se não quer dar aula, vai ser jardineiro, coveiro ou policial, mas se afaste da educação!" No entanto, o máximo que você "deve" dizer é: "Bem, discordo da sua opinião e não vejo fundamentos pedagógica e educativamente construtivos nela!" Não é pra se morder? Mas paciência um dia acaba, e aí, bem, não sei se vou manter o salto no lugar. 

O pior é que quem perde com tudo isso são quem? Os alunos! Os alunos que têm DIREITO à boa educação e formação cidadã! Os alunos que merecem RESPEITO por parte de seus educadores, sem serem tratados como água de vaso sanitário! Os alunos que DEVERIAM TER uma educação étnico-racial pautada nos princípios do respeito da diversidade, onde a cultura é algo que não deve se mostrar hierarquizado. Mas o que temos, infelizmente, são uns tantos teachers como os que deram origem à minha revolta escrita aqui no post.

Mas existe uma coisa que me faz rir dessa situação toda, pessoal. E é o seguinte: em cada uma das minhas turmas, do 6º ao 9º ano, foram criados grupos de estudo em História , Cultura e Identidade Africana e Afro-brasileira, onde os alunos do interior, carentes, menosprezados, desacreditados e humilhados estão estudando literatura de ícones da prosa fantástica africana, lendo fundamentos teóricos de estudiosos da negritude e, é claro, analisando o conceito de "identidade" do Stuart Hall. Bem, os profes continuam na deles lá, só com o velho e carcomido livro didático. Trocando em miúdos, os alunos agora continuam sendo do interior e carentes, mas além disso são valorizados, engajados, assíduos, estudiosos e sensíveis! Melhor correrem, licenciados! O pessoal da zona rural tá passando anos luz de vocês, humana, acadêmica e cognitivamente falando!
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Ao que eu respondi isso:
André, a gente tem sempre que lembrar que as pessoas são (também) fruto de um dado contexto. O que seria da sua prática hoje se não fosse, por exemplo, a influência de Negreiro? Seria igual? Esse tipo de formação que você prega é o tipo de formação que a maioria de nós profes não teve! Quando a gente lembra disso fica bem mais fácil ter menos raiva e mais solidariedade. Seus colegas merecem seu respeito - e precisam dele pra poderem te ouvir sem se sentirem acuados. Pelo respeito, eles podem se sentir acolhidos por você.
Outra: NUNCA espere que seus colegas concordem com você. Suas idéias são revolucionárias e não existe revolução sem resistência. 
Fiz bem?

11.11.10

"A senhora num faz prova não, professora?"

Prefiro fazer Written Assessment a fazer prova. Primeiro, pelo seu caráter mais informal - não existe aquela lista de questões com o espaço específico de cada resposta, padronizadinho pra todo mundo e que dá um trabalho da gota serena pra elaborar mais de um tipo. O WA você resolve com uma folhinha em branco. E eu ainda dou a opção de fazerem numa folha de caderno, se o aluno preferir. Gosto mesmo é de levar folhinhas coloridas - verdinhas ou amarelinhas: os trabalhos ficam tão mais lindinhos! E fora que como WA geralmente tem a ver com  produção textual de algum gênero específico, entra em cena todo um lance plástico: um dos WAs deste ano foi uma cartinha pra um colega se apresentando (sempre usando funções trabalhadas em sala de aula). Eles fizeram desenhos, pintaram, usaram canetas coloridas, copiaram versos de músicas e poemas nas cartinhas - foi lindo! Dá realmente pra perceber o quanto eles se engajaram no trabalho.

Uma outra vantagem que eu vejo no WA em relação à prova tradicional é que, em geral, questões de prova solicitam que o aluno tenha domínio DAQUELE TÓPICO especificamente. Suponhamos que o aluno teve um rendimento de 50% do que foi trabalhado em sala; suponhamos ainda que, na prova, sejam trabalhados tópicos dentro dos 50% que ele aproveitou: temos um aluno com uma nota alta que não reflete o que ele aprendeu. Suponhamos agora que a prova aborda essencialmente elementos que ele não compreendeu bem: temos agora uma aluno com uma nota muito baixa que também não reflete o que ele aprendeu. Logicamente, você pode fazer uma prova impressa com cara de WA e um WA com jeitão rígido de prova bimestral - atenção à essência de um e de outro aqui, por favor.

Pois é, mas nem tudo são flores: a prova dá mais trabalho pra elaborar; o WA dá mais trabalho pra corrigir. O profe tem que ter em mente muito claros os critérios. Quanto pra estrutura, quanto para a gramática, quanto para ortografia, quanto pela omissão de um verbo auxiliar; quanto pelo tópico fora de contexto, quanto pra criatividade, quanto pela incoerência, quanto pela textualidade ameaçada. É chatinho, mas no fim das contas é bacana.

10.11.10

Haddad, Garcia e ENEM

Percebo com grande satisfação a segurança e a tranquilidade de Haddad na hora de responder perguntas desenhadas pra acusar.

8.11.10

(Sobre o ENEM #2) Herdeira da ditadura,

... a tradição escolar brasileira não segue essas diretrizes. Ela é linear. As disciplinas são como cordas bambas paralelas: elas não se cruzam, não dialogam e o aluno não tem como se apoiar em mais de uma ao mesmo tempo, pois são distantes entre si - pelo menos mais que o alcance de suas pernas. O dia-a-dia do aluno não é problematizado. O contexto é o dos livros - distante, teórico, abstrato... distante. E muitas vezes irrelevante, posto que é visto como algo totalmente sem relação com o aqui e agora. Nossas escolas, de maneira geral, não sabem como trabalhar de maneira interdisciplinar, integrando teoria e prática, estimulando a reflexão e a crítica. Sequer ensinam o aluno a se posicionar diante do que quer que seja.

Agora imagine que você vai fazer um exame de curva glicêmica. Você acha que tem glicose baixa e não quer "fazer feio" no exame (?). O que você faz pra ludibriar os testes? Atola Coca-Cola com biscoito recheado! Consequências: um exame adulterado que poderá esconder problemas sérios de saúde. E uma dor de barriga, pra deixar de ser besta. É assim que eu enxergo os "cursinhos preparatórios pro ENEM" (?!?). Pelamorde, meu povo, falassério. Se seu aluno não aprendeu no EM a refletir, é uma aula de CURSINHO que vai ensinar? Gimme a break! Tem uma escola/cursinho onde moro que divulga seu curso preparatório assim: "ENEM - uma competição nacional". Competição. Tá com a gota!

O fato de as IES adotarem o ENEM era pra ser uma coisa boa também. Afinal, numa cultura escolar utilitarista, um exame só pelo diagnóstico só pra fins de check up não interessa a ninguém, né mermo? As escolas dariam importância ao ENEM, se pautariam por ele, já que não se pautam pelo que deveriam - os PCNs. Mas, é aquela velha estória: A MAIORIA DAS NOSSAS ESCOLAS NÃO TEM FORMAÇÃO PARA UMA EDUCAÇÃO CRÍTICA, REFLEXIVA, QUE UNA TEORIA E PRÁTICA, QUE EXIJA A ARTICULAÇÃO DE CONHECIMENTOS DE ÁREAS DIFERENTES. Mas qual delas está pronta pra admitir isso? Nananinanão. Você fez a curva glicêmica, se entupiu de bagana; seu exame mostrou que você é diabético e seu médico passou remédio pra baixar sua glicose. Por causa disso, você quase entrou em coma. A culpa é de quem? DO LABORATÓRIO, É LÓGICO.

Alunos, o ENEM tem problemas ainda, sim. Ele tem problemas a serem resolvidos, SIM. Mas acreditem: vale a pena investir nele. O fim dele seria o fim de uma jornada que a educação brasileira PRECISA trilhar. Por isso tudo, eu, como professora e educadora comprometida, apóio o ENEM. E espero que o povo (com ajuda do PIG) não fique crucificando o Fernando Haddad por causa dos problemas desse ano. O MEC é muito, muito mais, INFINITAMENTE MAIS que o ENEM.

Posts inspirados em debate bacana com @vitorsic.


OBS: não sou da área da saúde e posso ter falado bobagem na metáfora dos exames. QUem quiser me corrigir, o campo dos comentários está à disposição! =P

(Sobre o ENEM #1) Comer camarão em casa...

... e sair pra fazer exame de sangue. Burrice, não?

Todo mundo que já fez exame de sangue sabe que existem muitos pré-requisitos pra cumprir antes de chegar ao laboratório. Dependendo do que se quer verificar, há o jejum de 8 ou 12h, nada de crustáceos por uma semana, repouso e assim por diante. Descumprir essas recomendações não é errado ou feio - é simplesmente sem sentido. Não adianta. Nem vale a pena se dar o trabalho de ir ao laboratório e (no meu caso) levar umas 5 agulhadas inúteis até que chamem a enfermeira mais experiente da casa pra achar a veia da gente, que é "fina demais" (aff, como eu sofro...). Esse exame não vai diagnosticar nada que sirva pro seu médico.

Enxergo o ENEM pela mesma perspectiva. o EXAME Nacional do Ensino Médio nasceu pra ser isso mesmo: um exame. Era pra diagnosticar questões relacionadas à qualidade do ensino médio. Era pra se tornar referência, como as taxas de colesterol: você tem que estar nesta ou naquela faixa pra estar bem. Se não estiver, tem algo errado e temos que tratar.

O ENEM tem tudo pra se torna uma referência benéfica pra gente. Não se baseia em questões pontuais. Não se baliza pela "decoreba" ou pelo academicismo precoce e imaturo que muitos vestibulares exigem. As questões tratam do dia-a-dia do país e os conteúdos se atravessam mutuamente. Em vez de andar numa corda bamba, o examinando conta com uma rede - vários conhecimentos entrelaçados. Uma consequência desejável disso seria que as escolas passassem a perceber a importância de trabalhar também dessa forma em sala de aula. O ENEM anda de mãos dadas com as diretrizes curriculares. Se estas forem cumpridas, tudo deve dar certo. Princípios pedagógicos críticos e reflexivos permeiam as diretrizes e o exame - e deveriam permear o ensino também.

E aqui começa o problema do paciente rebelde.